Partidos políticos brasileiros: entendendo o passado para compreender o presente.
Entrevista especial com Rodrigo Patto Sá Motta
A nova democracia é recente ainda no Brasil. Em cinco
eleições diretas, escolhemos apenas três presidentes. Um sofreu um processo de impeachment por
envolvimento com corrupção, um era de extrema direita e outro de extrema
esquerda. No entanto, podemos considerar que o país avançou em termos de democracia e
participação do povo. “Existem ainda, é bem verdade, forças poderosas que podem
constranger e moldar a opinião do eleitor, como o poder econômico, a
influência dos meios de comunicação ou o controle da máquina governamental, por
exemplo. Mas há também instrumentos que ao menos reduzem os efeitos negativos
que tais forças podem exercer”, diz o historiadorRodrigo Patto Sá Motta.
Nesta entrevista que concedeu à IHU
On-Line por
e-mail, Sá Motta analisa a estrutura do sistema
partidário brasileiro e seu desenvolvimento e a evolução da
democracia no
Brasil e na América Latina. Ele diz que, como nosso sistema partidário é
pulverizado, só será possível governar realizando alianças partidárias, mesmo
que essas alianças sejam feitas entre partidos ideologicamente diferentes.
Rodrigo Patto Sá Motta é graduado em História, pela Universidade
Federal de Minas Gerais, onde também obteve o título de mestre nesta área. Na
Universidade de São Paulo, realizou o doutorado em História Econômica e na
University of Mariland, nos Estados Unidos, obteve o título de pós-doutor.
Atualmente, é professor da UFMG. É autor de inúmeras obras, dentre as
quais destacamos: Em guarda contra o perigo
vermelho: o anticomunismo no Brasil (São Paulo: Editora
Perspectiva/Fapesp, 2002), Jango e o golpe de 1964 na
caricatura (Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2006) e Introdução
à história dos partidos políticos brasileiros (Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Um país que viveu uma intensa e marcante ditadura
militar, que teve inúmeras vezes cancelada pelo governo a ação dos partidos
políticos, que viu nascer um partido a partir da luta dos trabalhadores, tem,
hoje, que tipo de estrutura de sistema partidário?
Rodrigo Patto Sá Motta – Nos últimos anos, após o fim do regime
militar e o restabelecimento pleno das instituições democráticas, tem-se
observado o surgimento de tendências políticas animadoras. Há indícios claros
de que a democracia política caminha para a consolidação, assim como os
partidos (se considerarmos o grupo dos mais influentes), e os dois elementos
são interdependentes: a democracia moderna não vive sem partidos e vice-versa.
Comparada aos períodos anteriores de nossa história, a dinâmica política
atualmente em curso é certamente a mais democrática e mais rica. Algumas observações podem ser
muito ilustrativas e justificar o argumento.
O comunismo
Veja-se o exemplo da questão comunista. A
intolerância em relação ao Partido Comunista foi uma marca constante da política
brasileira e os comunistas atuaram a maior parte do tempo clandestinamente,
perseguidos pelas forças de repressão. A partir da “Nova República”,
tal quadro mudou, e os comunistas puderam legalizar seus partidos. Na verdade,
a diminuição do controle repressivo tem beneficiado a setores sociais mais
amplos, para além da esquerda revolucionária. Os sindicatos também constituem
exemplo interessante, pois contam hoje com uma liberdade de atuação bastante
considerável, após décadas de controle rigoroso por parte do Ministério do
Trabalho. Basta lembrar que as Centrais Sindicais foram consideradas
subversivas e inaceitáveis há poucas décadas e atualmente são instituições
reconhecidas como parte legítima do jogo político.
A eleição de Lula
Seguindo a mesma linha de argumentação, a vitória do Partido dos Trabalhadores e a eleição de Lula em 2002 constituem um marco significativo na história
política do
país. Pela primeira vez no Brasil, um partido com origem na esquerda e nos
movimentos sociais e, detalhe significativo, sob a liderança de um ex-operário,
conseguiu ganhar eleições presidenciais e chegar ao poder. É bem verdade que,
para vencer, o PT precisou moderar suas propostas (e imagem) e aliar-se a
grupos políticos conservadores. No
entanto, tendo em vista a história brasileira trata-se de fato singular e muito
marcante.
O voto dos analfabetos
Outra mudança alvissareira aconteceu com o voto dos analfabetos.
Excluídos do quadro da população eleitoral desde o final do século XIX foram
transformados em cidadãos de segunda classe, proibidos de participar da escolha
dos dirigentes do país. Hoje, pode-se dizer que o sufrágio universal está
definitivamente implantado no país, já que não há restrições legais à participação
eleitoral dos cidadãos. No último pleito, havia cerca de 125 milhões de
eleitores aptos a votar, o que representa mais de 60% do total da população
brasileira. O contraste com as eleições realizadas em períodos anteriores de
nossa história é flagrante: em 1930, por exemplo, pouco mais de 5% da população
depositou seu voto nas urnas.
A experiência democrática
Por outro lado, se compararmos o quadro recente com a experiência democrática anterior mais significativa, o período
entre 1945 e 1964, evidencia-se a existência de situação mais animadora nos
dias atuais no que tange à estabilidade institucional: cinco eleições
presidenciais (1989, 1994, 1998, 2002 e 2006) contra quatro (1945, 1950, 1955 e
1960); 24 anos de funcionamento das instituições liberal-democráticas desde
1984, enquanto no outro período o Estado de direito durou somente 19 anos, pois
foi interrompido pelo golpe de 1964. Além disso, nos anos recentes não temos
visto golpes ou ameaças sérias de golpe, e o único presidente que não terminou
seu mandato foi impedido por vias legais (Collor), enquanto na fase posterior à
Segunda Guerra um presidente se suicidou, um renunciou e outro foi derrubado
pelos militares.
Para
além dos dados quantitativos, é factível afirmar, mais uma vez lançando um
olhar para a história, que qualitativamente existem hoje melhores condições de
exercício do direito ao voto. O cidadão não é mais burlado de maneira grotesca
como em outras épocas, quando a fraude impedia a manifestação livre da vontade
dos eleitores, salvo quando esta coincidia com o interesse dos ocupantes do
poder. Existem ainda, é bem verdade, forças poderosas que podem constranger e
moldar a opinião do eleitor, como o poder econômico, a influência dos meios de
comunicação ou o controle da máquina governamental, por exemplo. Mas há também
instrumentos que ao menos reduzem os efeitos negativos que tais forças podem
exercer: o acesso gratuito e periódico de todos os partidos aos meios de
comunicação; o aparecimento de um setor da opinião pública bem informado e com
capacidade crítica; a existência de organizações da sociedade civil cuja
atuação fortalece a cidadania; a liberdade de imprensa.
IHU On-Line – Como o senhor analisa o desenvolvimento dos partidos
políticos no Brasil?
Rodrigo Patto Sá Motta – A história dos partidos políticos
brasileiros é acidentada e tumultuada. Ao longo de aproximadamente dois
séculos, desde o início da independência, tivemos seis sistemas partidários diferentes. E as alterações sofridas pelos
partidos, provocando extinção e formação de novas organizações, sempre
coincidiram com grandes mudanças nas estruturas do Estado brasileiro, geradas
por revoluções e golpes políticos, com a única e parcial exceção da reforma de
1980. Comparado a outros países, principalmente EUA e nações da Europa
ocidental, onde os sistemas partidários invariavelmente duram muitas décadas, o
Brasil tem tido uma trajetória de marcante instabilidade.
Durante boa parte de nossa história, prevaleceram regimes
políticos autoritários e, mesmo quando estiveram em vigor instituições
liberais, a intolerância continuava presente, ocasionando perseguições
sistemáticas aos defensores de propostas de transformação social. Na
essência, a instabilidade política, os golpes sucessivos e as constantes
mudanças na estrutura partidária decorrem dos mesmos fatores básicos: o temor
dos grupos privilegiados em relação à democracia, sua relutância em aceitar os
riscos decorrentes das práticas democráticas, que poderiam levar a
transformações da ordem social, e a incapacidade dos setores sociais e dos
líderes comprometidos com a democracia em fazer prevalecer seus pontos de
vista, sua fraqueza política nos confrontos com as coalizões autoritárias.
Deve ser realçado também, a bem da verdade, que os grupos
políticos defensores das causas sociais e ligados ao pensamento de esquerda
contribuíram muitas vezes para a falência das experiências democráticas
brasileiras. Na medida em que a esquerda enfatizava de maneira central em sua
pregação as questões sociais, praticamente resumindo o problema democrático à
solução das desigualdades, dava pouca importância à democracia enquanto sistema
político, baseado na liberdade e no pluralismo. Freqüentemente, os grupos de
esquerda encararam a democracia política como um expediente para alcançarem o
poder, mas demonstraram pouco apreço pelos valores democráticos em si mesmos,
levando a supor que se chegassem ao poder governariam de forma autoritária. Em
suma, os partidos têm sido fracos por causa da fragilidade da democracia e
vice-versa, a democracia teria tido mais chances de consolidação se poderosos
partidos políticos lhe servissem de sustentação.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a democracia na América Latina
a partir das suas posições quanto ao desenvolvimento dos partidos políticos no
continente?
Rodrigo Patto Sá Motta – Democracia é uma palavra escorregadia, que
tem diferentes significados, dependendo de quem a usa. Considerando-a no
sentido de democracia representativa, associada ao pluralismo e o respeito às
liderdades tradicionais, os partidos têm papel importante a desempenhar como
organizadores da vontade popular e como veículos para o debate de idéias. É por
isso que os regimes autoritários sempre se chocam contra o sistema
pluripartidário. No entanto, os partidos podem servir também à tirania.
Freqüentemente, as ditaduras são estruturadas em torno de partidos, que servem
para organizar os apoiadores e seguidores do regime autoritário, seja lá qual
for sua coloração ideológica. Desse modo, fica difícil fazer uma análise
abrangente para a América Latina, considerando a relação entre partidos e
democracia. Os partidos tanto serviram à democracia quanto foram seus algozes.
A democracia representativa precisa dos partidos para se
viabilizar, e nos países da América Latina em que há maior estabilidade das
instituições e liberdade política os partidos encontram melhores condições para
se fortalecer. É bom lembrar, porém, que os partidos não são a única forma de
expressão e organização de demandas, opiniões e interesses. Há uma plêiade de
outras organizações que atuam no espaço social e ajudam a afirmar a convivência
democrática, ora fazendo trabalho que deveria ser dos partidos, ora cooperando
e completando a ação deles.
IHU On-Line – Os partidos políticos brasileiros são, entre si, diferentes, mas alguns se destacam pela total oposição de idéias em relação a outros. Como o senhor percebe as alianças políticas feitas no país e que conseqüências podemos perceber dessas alianças nos governos?
IHU On-Line – Os partidos políticos brasileiros são, entre si, diferentes, mas alguns se destacam pela total oposição de idéias em relação a outros. Como o senhor percebe as alianças políticas feitas no país e que conseqüências podemos perceber dessas alianças nos governos?
Rodrigo Patto Sá Motta – A fragilidade dos partidos e a maior ênfase
no papel dos líderes e figuras singulares é um estímulo para deixar para
segundo plano os ideais partidários e partir para alianças pragmáticas, às
vezes visando apenas objetivos eleitoreiros. Nesses casos, naturalmente, ficam
comprometidos quaisquer projetos sérios de governar segundo linhas
programático-partidárias. Outro problema a ser considerado é a falta de nitidez
dos programas partidários, muitas vezes idênticos uns aos outros, ao menos no
papel, e um vício comum na política brasileira, notadamente nos períodos mais
recentes: a falta de fidelidade, ou seja, a facilidade com que os parlamentares
trocam de partido. A intensidade recente do fenômeno da migração partidária tem
levado a muitas críticas ao sistema, e a propostas de reforma política na
tentativa de coibir tais práticas. Mas, até o momento, não houve consenso nessa
matéria, seja porque os políticos resistem a aceitar controles que reduziriam suas opções eleitorais, seja
porque o estatuto da fidelidade partidária implica ressuscitar medida
autoritária implantada durante o regime militar.
“Em sistemas partidários pulverizados como o nosso seria quase
impossível governar sem a presença de alianças partidárias”
No entanto, é preciso considerar que em sistemas partidários pulverizados como o nosso seria quase
impossível governar sem a presença de alianças partidárias. Um projeto de poder
baseado em partido único ou coalizão muito ortodoxa teria grandes dificuldades
para exercer o governo de forma produtiva: poderíamos imaginar situações em que
a vitória eleitoral seria possível, mas exercer o governo é outra coisa, dada a
necessidade de apoio no Congresso. De maneira que tem sido inexorável a
necessidade de fazer alianças para conseguir governar o Brasil. A tendência à
fragmentação do sistema partidário brasileiro obriga os governos a montarem
coalizões multipartidárias em busca de apoio estável no Congresso. A
instabilidade do apoio partidário é um estímulo para o uso de práticas
fisiológicas e mesmo formas de corrupção mais cruas, como a compra do apoio dos
parlamentares à base de pagamento em dinheiro, tal como denunciado no caso do
“mensalão” em 2005. Esse escândalo foi particularmente grave e gerou desalento
em setores influentes da opinião pública, sobretudo por envolver o PT, partido
que sempre enfatizou uma auto-imagem de honestidade e denunciou a corrupção dos
outros.
Em suma, na realidade brasileira seria difícil para qualquer
partido governar sozinho, de modo que é pouco provável evitar as coalizões. O
dilema é conseguir compatibilizar o sistema de alianças com governos coerentes, e, sobretudo,
evitando a corrução. Cabe aos nossos líderes encontrar saídas para esses
problemas, pois não creio que seja inevitável comprar o apoio parlamentar para
exercer o governo.
IHU On-Line – Vivemos em um país onde, apesar de sua política econômica inequivocamente ortodoxa, praticamente todos os partidos são de "esquerda". Hoje, direita brasileira só existe em discussões acadêmicas e filosóficas?
IHU On-Line – Vivemos em um país onde, apesar de sua política econômica inequivocamente ortodoxa, praticamente todos os partidos são de "esquerda". Hoje, direita brasileira só existe em discussões acadêmicas e filosóficas?
Rodrigo Patto Sá Motta – No Brasil, principalmente por causa da
existência de problemas e carências sociais muito graves, normalmente as
pessoas se dizem favoráveis a mudanças, reformas etc. Os discursos em defesa de transformações, a favor
do novo, normalmente são bem recebidos. Dado esse quadro, é difícil a afirmação
de posições nitidamente conservadoras, pois quem assume tal postura arrisca-se
ao isolamento político. Por isso, mesmo quem tem opiniões conservadoras é
tentado a escondê-las ou mitigá-las, por opção estratégica. Na nossa história,
tivemos alguns movimentos claramente conservadores, mas os mais eficazes entre
eles foram os que mesclaram o conservadorismo a projetos modernizantes, dando
origem a situações de compromisso entre conservadores e modernizadores
autoritários, como vimos nos períodos 1937-1945 e 1964-1984.
Levando
em conta a outra grande tradição pertencente a esse campo, o liberalismo, cuja
pertinência à direita é polêmica e objeto de disputa, diria que hoje ela encontra
condições muito propícias no debate público, talvez viva seu melhor momento na
nossa história. Nos dias atuais, alguns valores fortes na sociedade brasileira,
que atuaram como barreiras à difusão do liberalismo, encontram-se bastante
fragilizados, como o solidarismo cristão e o nacionalismo, o que tem favorecido
a disseminação das crenças liberais (por exemplo: a excelência das leis de
mercado, as virtudes da livre iniciativa, a ineficiência do Estado). Mas ainda
é cedo para fazer previsões sobre o futuro próximo.