O Ofício da Política
Plínio de Arruda Sampaio
Pediram-me um testemunho dos meus trinta anos de militância na política.
A pergunta é: Em que esta atividade ajuda (ou dificulta) a sintonia entre a
vida prática e a mensagem do Cristo? Dividi a resposta em três partes: o
chamado, a cruz, a consolação.
O chamado
Fui chamado muito cedo à política. Aos vinte anos de idade, era membro da JUC
(Juventude Universitária Católica). Nessa época, por influência de um canadense
inspirado – Fernand Cadieux – , a JUC descobriu a dimensão do social. Passamos
a ler Maritain, Mounier, Teilhard de Chardin, Congar. Escutávamos atentamente
Dom Helder, Frei Romeu, o padre Cardjin, Lombardi, Lebret. Eles desvendaram,
para toda uma geração de jovens católicos, a dimensão maior da política: a
política enquanto “ciência, arte e virtude de bem comum”.
Esses foram os anos (e os profetas) que semearam a grande colheita de João
XXIII, Paulo VI e do Vaticano II, Esses forma, em nosso país, os anos
tumultuosos do fim da era Vargas, da urbanização acelerada, do salto para a
grande indústria: anos de muita agitação de rua, de grandes comícios e de muita
perplexidade e de profundas esperanças.
Convictos de que, para não fugir desta realidade desafiadora, era preciso
“botar a mão na massa”, um grupo numeroso de militantes católicos de minha
geração decidiu ingressar no P.D.C. (Partido Democrata Cristão). Eu estava
entre eles.
A cruz
Não existência imune
às dificuldades, às frustrações, ao sofrimento; e não há vida cristã se a
aceitação dessas cruzes.
Não são mais pesadas nem mais difíceis de carrear as cruzes dos que escolheram
o ofício da política: são apenas diferentes das que cabem aos que fizeram
outras escolhas. Vou enumerar aqui algumas delas. Surgiram logos nos primeiros
passos e estão comigo até hoje. São dificuldades que se apresentam
cotidianamente e que não consigo mais resolvê-las de forma absolutamente
satisfatória.
A atividade política implica, necessariamente, disputa. Não há político – no
sentido escrito da palavra – que não esteja envolvido em discussões, críticas,
dissensões, greves, manifestações de massa. É da natureza do ofício. Uma cruz
difícil de carregar para quem se vê, de um lado, na obrigação de ser eficaz – e
portanto combativo, contundente – mas que, de outro, não pode admitir que essa
agressividade se transforme em violência e desrespeito aos outros. Não é nada
fácil evitar que o combate apaixonado contra as injustiças descambe para a
animosidade contra as pessoas.
A disputa política trava-se em dois níveis: luta-se para conquistar os
instrumentos requeridos para o exercício da atividade – o mandato, o prestígio,
o poder; e luta-se também, com algum poder nas mãos, contra o poder dos outros.
Em ambos os casos, é preciso ganhar aprovação, confiança, simpatia, lealdade,
votos, apoio de milhares de pessoas. Isto requer a ação deliberada de
colocar-se em evidência, de fazer propaganda, de buscar notoriedade: cruz
difícil de carregar para quem foi educado na ética da modéstia, da gratuidade
das ações, do desprendimento e que convive em um meio que se escandaliza quando
alguém se esforça por “aparecer” ou não cede lugar ao companheiro.
A política é uma atividade complexa, difícil de ser entendida por quem não a
acompanha mais de perto. Os padrões de moralidade do homem público diferem dos
que regem a ordem privada. No Brasil, dada a falta de participação do povo na
vida pública, essas diferenças de comportamento tornam-se incompressíveis para
a grande maioria. Habilmente exploradas por certos meios de divulgação, geram a
imagem de que todo político é um homem interesseiro, de duas palavras,
“vira-casaca”, vaidoso aproveitador; uma pessoa que trabalha pouco e ganha
muito; um parasita, quando não, desde logo, um ladrão.
Essa imagem, infelizmente nem sempre equivocada, mas com certeza injusta quando
generalizada, atinge a nós todos e machuca bastante.
Os acontecimentos de 64, que me significaram a perda do mandato
parlamentar, a cassação dos direitos políticos, a demissão do emprego, meia
dúzia de processos por subversão e doze anos de exílio (não só para mim, mas
para minha mulher e meus filhos), não me feriram tanto quanto verificar que
pessoas, até chegadas a mim, acreditaram naquela impostura e naquelas
inverdades.
Á cruz pesada da incompreensão, acrescenta-se a da angústia: angústia de ser
obrigado, em muitas ocasiões, a tomar decisões pelos outros; angústia de ser
obrigado – nem sempre com todos os elementos de informação nas mãos – a tomar
atitudes que induzem a comportamentos alheios; angústia de possuir uma fala
cheia de consequências e de ter de usá-la, sem poder exercer integral controle
sobre essas consequências; angústia de nunca saber, de modo cabal, se essa
palavra, expressada quase sempre no calor dos embates, foi de menos, foi demais
ou bateu no ponto certo.
A consolação
Mas a vida do cristão
que faz política não é feita somente de cruzes. Ninguém a suportaria. Nosso
Senhor proporciona-lhe também muita consolação.
A primeira é a alegria que vem de dentro. os militantes cristãos, engajados na
ação política, como os antigos construtores de catedrais, sabem que estão
colocando algumas pedras para a construção de uma catedral magnífica e eterna –
a da justiça e da fraternidade entre os homens. Esta consciência da importância
da tarefa consola.
A outra grande alegria vem de fora: é o respeito, a estima, o serviço oferecido
desinteressadamente pelos companheiros, a lealdade daqueles que percebem o
esforço que o político faz e a dificuldade do seu ofício. Ser amado pelos
outros, ainda que possam ser apenas uns poucos, também consola.